Vontade de Deus? Pelo amor de Deus!

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Lendo Identidade (Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2005, p.44), entrevista feita através de e-mails por Benedetto Vecchi ao também sociólogo Zygmunt Bauman – entrevista esta que lhe rendera este livro – pude dar razão ao pensamento alimentado por mim há algum tempo. Ao citar Rorty, inclinei-me, satisfeito, não apenas pelo prisma acadêmico, mas, sobretudo, humano. Notemos:


“Nossos filhos precisam aprender, desde cedo, a ver as desigualdades entre seus próprios destinos e os de outras crianças, não como a Vontade de Deus nem como o preço necessário pela eficácia econômica, mas como uma tragédia evitável.” (RORTY, Richard. Philosophy and Social Hope. Penguin Books, 1999, p.203)

Minhas mãos estão dadas à tese acima. A ideia clássica do mistério religioso deu lugar aos fatos, a uma realidade mais secularizada. Se resolvermos assumir honestamente, temos, numa linguagem bem comum, um Deus frágil, um Deus cuja força não se encontra na sociedade de modo mágico. Questiona-se diariamente as injustiças e diferenças sociais sem colocar as mãos no bolso e acionar os valores mais agudos do cristianismo (para os cristãos): “amar a Deus e ao próximo como a ti mesmo”.

A cada 5 minutos uma criança morre no mundo por causa da fome. O UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) alertou em julho/2011 que meio milhão de crianças na África sofre de desnutrição severa e está em risco iminente de morte. Embora as informações sejam díspares pelas tantas fontes divulgadas, o fato está aí. Uma cidade capixaba investiu 8 milhões de reais em iluminação para o natal do último ano enquanto sua cracolândia é alimentada pela indiferença. Em cidades do interior do noroeste fluminense, a saúde é precária e seu sistema controlado por médicos que assumem alternadamente a prefeitura municipal. Escândalos políticos, privatizações, exclusões (...), são acrescidas à lista de questionamentos. Por que Deus permite? Onde Deus está?

O problema é esse: Deus não está. Desejaria. Talvez a declaração sirva como solução: Deus desejaria. Não cabe aqui uma ponte para o debate da ubiquidade. Definitivamente. O que está em pauta é o agir, a tomada de decisão, a mudança, a tentativa de equilíbrio. Aí Deus não está. Ao menos é o que salta aos olhos. Consegue perceber?

Revisitemos, pois, o evangelho de Marcos 12:30 pelo viés da pós-modernidade. Jesus acerta o foco: a ti mesmo. Como essa sociedade carpe diem (colha o dia) só se presta a pensar no si (aqui e agora), no enriquecimento particular, nas avessas das expectativas do outro, não se sabe até quando o mundo aguentará tanto descaso. Aliás, até o final do séc. XX (notem a generosidade), o problema do capitalismo era a exploração, agora, a exclusão.

Há espaço para retomar as palavras de Jesus: “como a ti mesmo”. Os mandamentos se resumem. Ele chama o ser para uma auto-análise. Como a ti mesmo! Olhe! Veja! Sinta! Goze! Chore! Coma! Beba! Durma! Acorde! Medique! Suga! Agora, divida! Simpatize-se!

Concluiremos que a dificuldade de sustentar a realidade de que sou eu mesmo o responsável pela catástrofe já demonstra sinais de uma doença muito mais danosa. É mais fácil colocar na conta de Deus e continuar nessa linha crítica: “Por que, Deus? Por quê?”

Será que somos o que somos porque o outro é aquilo que é? Será que haveria mudança no self se o outro agisse na dor alheia? Será que eu mesmo seria outro se o coração fosse sim-pático ao próximo?

O mundo paradisíaco é lenda, é mito se não há luta, se não há protesto, se não há ação por e pela causa do outro.

É claro! O apelo é para que o “si” desista de coisificar o outro crendo que Deus há de socorrer àquele por quem tanto se ora – mas nada se faz. Deus fará? Talvez. Mas ainda desconfio que se o homem não o fizer, continuará sendo responsável pelo grande caos no mundo. Não O advogo, todavia, Deus não pode ter em sua conta este débito. O débito é nosso!

As lições são ainda mais audaciosas no próprio cristianismo, pois é o homem quem deve “suster Deus”:

Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes ver-me. (Mt 25:35,36).

Portanto, o que se noticia no mundo não é uma questão de “Vontade de Deus”, é negligência humana, política, eclesiástica. Deus está distante, esperando, com fome, com sede, nu, perdido... Espera ser servido servindo.

Por: Nelson Lellis

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