Uma parábola: De galinhas, de ovos e de descobertas

quarta-feira, 23 de maio de 2012

"E a tradição, justamente graças à obscuridade da sua origem, transforma-se num poder de força excepcional, no seio da relação religiosa." (W. DILTHEY, Os tipos de concepção de mundo)
Desde criança ouvia o seguinte questionamento: “Quem vem primeiro? O ovo ou a galinha?” Para mim, a galinha, pois nenhum ovo se choca sozinho. Em minha mundividência, um ser gerador de vida deveria conduzir todo o processo de gestação de outros seres vivos. Seria necessário um chocador universal. Religiosamente, Deus. Imagino: Adão e Eva sem umbigo, mas chocados. Chocante!

Agora, retiramos a galinha da história, notamos um ovo sozinho (que injustiça!). Tá, dois ovos. Nascerão sem referência alguma. Terão de aprender a ler o mundo, encontrar seus pontos vitais, seus caminhos de ida e volta, de imagem, de como amarem (o que seria o amor neste caso?).

Bem, eles nasceram. Viram o sol, a luz, as trevas, a aquosidade do solo após a chuva. Conheceram os raios e notaram que o gerador de raios era perigoso.

Depois de se descobrirem, mais um ovo. Mais um não, dois. Quando saíram das cascas, um raio atingiu violentamente um deles. Morte na família. Temor ao que vem do céu! Lá há algum poder sobrenatural, ou seja, um poder de que não dispomos na terra. Os ossinhos do filhote começaram a aparecer, assim como um sentimento estranho de impotência, de sofrimento, de saudade. Resolveram esconder a ossada em algum lugar para que, nesta tentativa, o dor se escondesse também.

Um dia se passou e aprenderam que o tempo foi rápido para que outros serezinhos dessem fim na ossada. Daí, aprenderam o significado do poder do tempo: o tempo leva embora a solidez, mas força a construção da imagem na memória. Sofreram, então, com a “ideia” do envelhecimento.

Após vários aprendizados, outros ovos, temores e criações, a galinha mãe morre. Não esperam. Escondem logo a ossada para não sofrerem. Não adianta. No dia seguinte a dor bateu e foram ver. A mãe ainda estava lá. Resolveram cobrir de terra e não voltaram mais. Olharam para cima, os raios, os clarões anunciavam algo desconhecido.

A família resolveu chamar de Deus. Sempre que acordavam, viam se o céu estava escuro. Essa era a forma de Deus dizer: “não saiam de casa”. Se o sol brilhava, aí sim, estavam liberados para viver do lado de fora da casinha construída.

Aprenderam a falar com os céus. Quando havia algum desentendimento por comida ou espaço na casinha, pediam um raio e expulsavam de casa um pobre coitado. Como o raio não vinha, entendiam que Deus não queria matá-lo. A casa, então, estava de portas abertas. Afinal, o condenado tinha achado graça diante do desconhecido.

Outras gerações foram chegando. Aprenderam a ver o mundo de acordo com a mundividência dos pais. Apreenderam, experimentaram coisas novas e coisas novas foram ensinadas no decorrer dos anos. Paradigmas inéditos.

Veio a sociedade dos galos e galinhas. Criaram leis. As leis deveriam ter um braço maior. Esse braço era do poder invisível (ninguém se opôs), que responde definitivamente: “saia!, hoje é dia de viver” ou “hoje, se sair para viver, morrerás”.

Entretanto, passados alguns anos, muitos se frustraram com a oração. Esse Deus só respondia quando bem quisesse. Alguns desistiram de orar. Alguns descumpriam as leis, porque a teodiceia não passava de falácia. Os mais exaltados disseram: “não há Deus”.

Mas havia outro grupo. O grupo dos que buscavam na tradição oral e nas cosmogonias, o sentido e a ordem. “Olhem para trás”, gritavam eles, “Não desprezem as descobertas”.

Sem delongas, deixo aqui expresso o desassossego dessa teologia: “quais descobertas?”.

Por: Nelson Lellis

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