Caminhos da Espiritualidade
terça-feira, 19 de junho de 2012
Postado por Ventos Modernos às 09:42
O texto bíblico do Evangelho segundo São Lucas apresenta no
capítulo 8 (entre os versos 40 e 56) dois eventos de cura que curiosamente se
sobrepõem. Como a Bíblia é fruto de uma edição que por vezes se equivoca, pode
ser que originalmente os dois eventos não tenham ocorrido ao mesmo tempo.
Todavia, parece bem plausível que o equívoco não tenha ocorrido ali e que tenha
mesmo havido uma simultaneidade nas curas narradas, pois não há bruscas
rupturas nas ações citadas pelo evangelista.
A passagem bíblica narra a aflição de Jairo, chefe de uma
sinagoga judaica, por conta da grave doença de sua pequena filha, que estava já
à beira da morte. Enquanto desce para a casa de
tal importante homem, Jesus, apertado pela multidão, é tocado por uma mulher, anônima, com fluxo
hemorrágico grave, o que também a colocava à beira da morte.
A sistematização que faz a Bíblia apresentar alguns números
quase que de forma cabalística nos coloca nesta passagem diante do número 12,
numeração que aproxima de forma curiosa a filha de Jairo e a mulher da
hemorragia. O número 12, como é sabido, expressa uma totalidade para a tradição
judaico-cristã, totalidade essa que remete às 12 tribos de Israel, nos levando
também aos 12 discípulos, já que Jesus era judeu e não deixaria de cumprir a regra.
Numa análise comparativa, temos no texto uma série de
possibilidades para se justificar a exemplaridade dos eventos bíblicos aqui estudados, pois é preciso estar atento
para o fato de ser um homem, chefe de sinagoga, e que tinha tudo para gastar,
em contraposição a uma mulher, que nem marido tinha para acompanhá-la, e que já
não tinha recurso algum, pois havia gastado tudo com médicos, sendo que sem
qualquer sucesso. Ao mesmo tempo, trata-se de Jairo, homem de quem todos
queriam aproximação, e de uma mulher, sangrando e morrendo, com a qual ninguém
queria (e nem podia, pois a mulher sangrava, o que a tornava impura) qualquer
contato. O mais importante; trata-se de um homem que tinha uma filha morrendo com apenas 12 anos de vida, contrapondo-se a uma
mulher vivendo já com 12 anos de morte. Um homem, chefe,
rico, cercado de gente e com os apenas 12 anos da moribunda filha lhe
martelando a cabeça e lhe tirando a paz. Uma mulher, anônima, pobre e sozinha,
com 12 anos lhe tirando as últimas esperanças de viver, mas ao mesmo tempo a
lançando à guerra. Jairo buscava a paz na cura da filha, a mulher buscava a
cura na guerra contra uma estrutura social imposta, pois precisaria vencer as
barreiras de uma sociedade machista, religiosa e autoritária para poder tocar
Jesus como nenhuma outra pessoa poderia tocar.
Jesus responde às duas: à filha de Jairo - ressuscitando-a,
pois quando ele chegou em sua casa a menina já estava morta - e à mulher do
fluxo de sangue, secando-lhe a hemorragia. Mas a maneira de fazê-lo, como quase
sempre acontece nas posturas daquele nazareno, não é a mesma. Ainda que a
totalidade e a exemplaridade dos 12 anos acompanhassem a ambos, o caminho de
Jairo é o que chamo de caminho
da religião, onde, seguindo todas as regras protocolares, o foco está no
que Deus pode fazer, a independer do que eu faça. O caminho da mulher é o caminho da espiritualidade,
quebrando quaisquer protocolos, e onde o foco está no que eu posso fazer com
meu ato espiritualmente revolucionário, a independer do que Deus e o sistema
façam.
Por misericórdia e graça, Jesus
recebe e responde a homens, religiosos, ricos e afamados, mas nunca deixa de
olhar de forma singular para quem o toca de forma única, fora dos padrões
protocolares e mediadores da religião imposta, ainda que o toque venha de
alguém pobre, sozinho, desprezado e, para chocar ainda mais a tudo e a todos,
de uma mulher.
Por: Cleinton Souza
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3 comentários:
Quando diz que o texto sugere muitas possibilidades, tento fugir dele e imaginar Jairo conduzindo sua filha para a ciência da época e encontrando a cura; a mulher, cuja Bíblia ainda lhe "nega" a identidade, se refugiando na sinagoga de Jairo e sendo curada por sua fé. São apenas possibilidades. Escondidas não no texto, mas vagas.
Imagino ainda, amigo Cleinton, uma vida menos dorida se a religião tivesse mais fé na ciência e menos fé na fé, bem como uma busca maior por esta espiritualidade que, com tanta delicadeza, resgatou através desse belo texto.
No entanto, ainda é fato e fator determinante para cristãos e cristãs, que Jesus é ponto de encontro dentro e fora dos portões da ciência.
Beijo grande,
Lellis
Nelsinho, e se a ciência tivesse menos fé na ciência e mais fé na fé? O caminho deve ser de mão dupla, não acha? Tento sempre fazer a mão dupla, uma vez que sou cientista social, mas também teólogo e pastor. E, quando nenhum destes elementos responde, lembro que sou também artista e a arte sempre me aponta uma resposta! Há braços...
Sim, concordo. Acho que a ideia é tentar fugir dos extremos. "Algumas" soluções estão aí, precisamos cavar fundo para encontrá-la. Mas como diz o Pr. Kivitz, "pensar dói".
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