QUARESMA 2013 | A morte do macho e a ressurreição do novo homem

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

No caminho da boa reflexão cristã conversão é algo que experimentamos muitas vezes ao longo da vida. À luz do evangelho de Cristo somos desnudados constantemente descobrindo aspectos em nós que carecem de transformação a fim de serem adequados às exigências do Reino.
A quaresma como tempo litúrgico só faz apontar para a dinâmica da vida com seus ritmos e tempos apropriados. Na extensão de nossa vida os períodos de reclusão e meditação são fundamentais. Neles sentimos toda a espessura de nosso ser, pois nos atrevemos a uma olhada franca para o nosso coração. Esse perscrutar a si mesmo, iluminado pela palavra de Cristo, nos leva à conversão.

Dentre os muitos aspectos que clamam por conversão nessa nossa saborosa existência humana me proponho refletir sobre apenas um: a noção de masculinidade. Como a quaresma é tempo que antecede e prepara a celebração da ressurreição de Jesus — que é ícone de toda ressurreição —, proponho que meditemos sobre a morte do macho e a ressurreição do novo homem. Esse caminho quaresmal que corpos, corações e almas masculinos são chamados a fazer é a trajetória da conversão.

Tomo como texto iluminador dessa singela peregrinação quaresmal João 12.24. “Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto”.

A masculinidade tem sido interpretada ao longo de nossa história preponderantemente sob o signo do macho. Tal interpretação aprisionou o homem numa cadeia de virilidade, violência, poder, insensibilidade e solidão. Dessa cadeia, essa masculinidade pervertida fez seu trono. Um trono que como qualquer outro se constitui em espaço de poder e tirania. Sentado em seu trono, empunhando o fálico cetro, o homem macho dispõe como quer de seus súditos, que não são somente as mulheres como por vezes se imagina, mas também seu próprio ser masculino (que estamos chamando de homem novo) que, reprimido dentro da casca de macho, sucumbe às dores de não poder se expressar.

O macho é um ser só, ou melhor, um quase-ser só. É só, numa sala de espelhos onde tudo que vê é reflexo de sua violência, de sua virilidade, de sua insensibilidade. De vez em quando uma voz lhe soa ao ouvido lembrando que “homem que é homem não chora”, que “macho mesmo é aquele que não leva desaforo para casa”, que “mulher é coisa para comer”. Essa voz, contudo, não o faz menos solitário. Ao contrário, ela só faz aprofundar o abismo da solidão. Ao aceitar a insensibilidade, distancia sua alma; ao assumir a violência, aprisiona seu corpo; ao entrar na ciranda da virilidade falicamente resumida, encarcera seu coração.

Se o grão de trigo não morrer viverá na solidão. Se o macho não morrer viverá encarcerado. Se o grão-macho de homem-trigo não morrer, viverá encarcerado na solidão. O caminho da morte é o único que pode salvar a masculinidade dos contornos perversos do macho. É preciso deixar morrer o invólucro de insensibilidade que prende a alma não a deixando experimentar sua condição de animus e anima. É necessário fazer morrer os mecanismos de violência que atrofiam o corpo, impedindo-o do toque meigo. É urgente ver definhar a coisificação do sexo que brutaliza o coração.
Mas, se o grão de trigo morrer, dá muito fruto. Esse é o movimento de conversão tão próprio da quaresma. Morrer para viver. Morrer para ressuscitar. Morrer para reencontrar-se na companhia fraterna de muitos e muitas. O grão vivo cai na terra e é abrigado por seu ventre generoso. Ali ele vê seus limites rompidos para o surgimento de uma forma mais bela de existência. O macho que permite tal morte pode encontrar no ventre da vida um lugar onde sua verdadeira masculinidade pode arrebentar o invólucro aprisionador, dando lugar a tal existência tão mais plena e cheia de vida.

Convertei-vos! Esse é o apelo da quaresma. Ressuscitai! É o apelo da páscoa. Convertei-vos, oh machos, deixai morrer o velho homem. Isso é o que nos diz o ser de Jesus, em sua alma, corpo e coração. Transformado, o grão solitário é agora ramo mais forte que partilha com os outros ramos a festa da vida. O caminho da morte à vida, do macho ao novo homem, é o acolhimento da fragilidade. Somente no caminho da fragilidade pode haver ressurreição. Frágeis, nos lançamos no ventre da vida, que é o coração materno de Deus, e ali somos restaurados.

Do ventre da vida surge o novo homem. Seu novo ser resplandece pela luz da ressurreição. Não se pode esconder de ninguém tal transformação. É uma luz que não se pode esconder debaixo de um cesto. Ali onde está plantado, novas relações se estabelecem. Os relacionamentos, o trabalho, a Igreja, a família etc., todas testemunham a força da ressurreição. Todos testemunham o vigor da páscoa e reconhecem a força da quaresma.

Para ilustrar o quanto o novo homem ressuscitado se faz notar, divido com você a canção que pode ser chamada de uma canção litúrgica da liturgia ordinária da vida.

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar

E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz

(Valsinha, Chico Buarque)

Essa chegada “tão diferente” é o caminho feito da ressurreição à porta da casa. Chegamos ao mesmo lugar só que não mais como os mesmos homens. Não somos mais machos. Somos novos homens. Acredite, essa conversão pode tudo, desde a companheira que se “fez bonita como há muito tempo não queria ousar”, passando pela “vizinhança [que] despertou”, chegando a “toda cidade [que] se iluminou”. Dessa forma, quem sabe, possamos ainda celebrar “que o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz”.

Por: Alessandro Rocha

1 comentários:

Cleinton disse...

caro alessandro,
confesso que me perdi um tanto na tentativa de compreender sua busca por harmonizar a questão de gênero à luz do citado texto bíblico, mas, ainda assim, achei seu texto bastante inspirador.

há braços...
cleinton.

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