Da missão como expansão à doação como missão

quarta-feira, 25 de abril de 2012


Tende em vós o mesmo sentimento Cristo Jesus:
Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus.
Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens.
Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!
Por isso, Deus o exaltou grandemente, e lhe deu o Nome, que está acima de qualquer outro nome; para que, ao nome de Jesus, se dobre todo o joelho no céu, na terra e sob a terra; e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai[1].

Introdução.

De onde a Igreja deve extrair os critérios de discernimento para sua forma de ser no mundo, para sua missão? O que estamos perguntando de fato é pelo critério teológico capaz de identificar a missão da igreja. É preciso perceber que há (ou deveria haver) uma coerência entre a idéia de Deus como a apresenta o cristianismo e a concepção de Missio Dei.
É certo que o evangelho (narrativa da compreensão que Jesus tinha de Deus, de si, e dos homens e mulheres seus companheiros) apresenta certa diversidade de imagens de Deus, contudo, toda essa diversidade ainda precisará ser submetida ao Deus encarnado, àquele que diz que quem o vê, vê o Pai. E é nesse sentido que se torna possível, e até mesmo necessário dizer, que é a lógica do Emanuel que deve mover a Igreja a uma identificação em sua identidade e missão. O Emanuel é o kenótico. Aquele que se fez conosco, para fazê-lo esvaziou-se de sua potência e majestade para humildemente estabelecer uma relação conosco. E este diz à Igreja vá e faz o mesmo.
A Igreja que compreende sua identidade e missão à luz do Deus kenótico só poderá ser, portanto, igualmente kenótica. Por isso dizemos mais uma vez: A um Deus impotente, uma Igreja frágil.

1 – “Tende em vocês os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo”.

A teologia paulina da kênosis pretende ser também uma pedagogia. E por isso, faz muito sentido (um sentido eclesial, sobretudo) que o hino cristológico de Filipenses 2. 6-11 tenha como antecedente os versos 1-5. A questão aqui ultrapassa a obviedade cronológica, os versos 1-5 são a intenção e direção pedagógica dos conteúdos teológicos dos versos 6-11. Neles encontramos as implicações existenciais e eclesiais do Deus kenótico. Vejamos:
Portanto, pelo conforto que há em Cristo, por toda sua ternura e compaixão, levai à plenitude a minha alegria, pondo-vos acordes no mesmo sentimento, no mesmo amor, numa só alma, num só pensamento, nada fazendo por competição e vanglória, mas com humildade, julgando cada um os outros superiores a si mesmos, nem cuidando cada um só do que é seu, mas também do que é dos outros. Tende em vós o mesmo sentimento Cristo Jesus[2].

            Destes 5 versos, o verso quinto apresenta uma síntese da intencionalidade pedagógica da teologia kenótica. “Tende em vós o mesmo sentimento Cristo Jesus:” é um imperativo posto á vocação cristã. E, ao mesmo tempo, um critério de discernimento para a identidade da Igreja e sua missão. Ter o mesmo sentimento, contudo, não pode ser confundido com sensações subjetivas, com emoções transitórias. Como afirma José Comblim, ter os mesmos sentimentos trata-se sim de alimentar “disposições pessoais: querer julgar, apreciar, escolher as coisas de acordo com o discernimento de Jesus, isto é, seguindo a regra do esvaziamento e da cruz[3]”.
Na perspectiva da teologia paulina a kênosis – rebaixamento, esvaziamento –, é o modelo para a Igreja, tanto em sua auto-compreensão, quanto no discernimento acerca de sua missão. Ter o mesmo sentimento. Tal expressão, contudo, seria vaga sem os versos 6-11. A expressão “os mesmos” é uma referência objetiva ao do Cristo de Deus em sua missão de encarnar-se. Neste sentido somos com-vocados a com a mesma atitude de liberdade que orientou o próprio Deus, nos lançar num mergulho em nossa realidade, para nela vivermos nossa missão da seguinte forma:
  • Esvaziando-nos de nossos projetos de poder.
  • Assumindo nossa condição de servos, percebendo que não há maior amor que dar a vida.
  • Tendo a semelhança humana. Não somos anjos, nossa vocação criatural é de sermos homens e mulheres.
  • Aceitando o caminho da cruz.
  • Somente desta forma a Igreja poderá ser identificada com Cristo e reconhecida em sua missão. 

Em suma, reconhecer a intenção pedagógica desta teologia é assumir a condição kenótica como critério de identificação da comunidade cristã. É aceitar de forma inalienável a necessidade de contração de potência, de renúncia ao poder e, de humildade e discrição, como sendo critérios de discernimento para o ser da Igreja e, por conseguinte, para toda a sua prática. No sentido de ilustrar e, ao mesmo tempo aprofundar essa ontologia e vocação da Igreja, lançaremos mão de algumas imagens que figuram como centrais na teologia do evangelho de Mateus e, que tem referência direta com a realidade da comunidade cristã como comunidade eclesial.

2 – Imagens evangélicas de uma igreja kenótica.

            A linguagem bíblica é preferencialmente simbólica. Nela, as imagens têm uma enorme importância. E isso se dá, entre outras coisas, pela dimensão não conceitual e, portanto, aberta, sobre a qual se construiu sua mentalidade. A pedagogia que emerge de tal mentalidade é de caráter criativo, onde cada pessoa é convocada à interação a partir dos elementos constitutivos de sua própria existência. É uma pedagogia que privilegia a vida comum, o cotidiano. E, desse chão das coisas comuns a linguagem bíblica constrói o caminho da vocação humana que se constitui numa relação com Deus.
            No Novo Testamento tal linguagem e sua pedagogia ganham expressão máxima. O próprio Jesus assumiu essa lógica do símbolo, tanto em sua existência (ele é o símbolo máximo da realidade que anuncia), quanto em seu testemunho e pregação (ele fez da parábola sua linguagem cotidiana). Esta realidade está totalmente de acordo com a condição kenótica que o Deus triuno assume para si. Sua revelação mais intensa (Jesus) se dá na precariedade da linguagem simbólica e, seu reino, anunciado pelo Filho no poder-humildade do Espírito será realizado por intermédio de parábolas que suscitam a vida ordinária de homens e mulheres.
            A um Deus livremente impotente não cabe uma teologia conceitual que se estabeleça sobre a violência da univocidade. E, também não cabe uma eclesiologia que lança mão do poder excludente da doutrina e do controle social e das mentes de homens e mulheres. Isso parece bastante claro na mentalidade bíblica (sobretudo neo-testamentária) e, na linguagem que a expressa. O poder institucional e a univocidade doutrinária não são próprios do mundo da intensa revelação do Deus kenótico.
            Para exemplificar o que estamos dizendo merece especial atenção a teologia da comunidade cristã expressa no Evangelho de Mateus[4]. "Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos[5]”. A mais intensa revelação do Deus kenótico se dá de forma igualmente kenótica. O Deus livremente impotente revela-se aos impotentes em linguagem impotente (e exatamente ao encontra-se a força de Deus, de seus filhos e filhas, e da linguagem bíblica). Falando sobre a missão da comunidade cristã Mateus expressa as palavras de Jesus da seguinte forma: “E se alguém der mesmo que seja apenas um copo de água fria a um destes pequeninos, porque ele é meu discípulo, eu lhes asseguro que não perderá a sua recompensa[6]".
Quando o mesmo Evangelho fala da aprovação e da reprovação da missão cristã, a lógica da centralidade dos pequenos surge como critério soteriológico.

Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que lhes foi preparado desde a criação do mundo [...] Digo-lhes a verdade: O que vocês fizeram a algum dos meus pequeninos, a mim o fizeram [...].
Então ele dirá aos que estiverem à sua esquerda: Malditos, apartem-se de mim para o fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos [...] Digo-lhes a verdade: O que vocês deixaram de fazer a alguns destes mais pequeninos, também a mim deixaram de fazê-lo[7].

O Deus que se fez pequeno dirige-ser aos pequenos em linguagem pequena e, espera que sua Igreja mostre-se pequena, tanto em sua auto-compreensão, quanto em sua missão, sob pena de ser reconhecida como “maldita” e ouvir a dura reprovação “apartem-se de mim...”. Esta Igreja com vocação a pequenez (e é preciso dizer que pequenez aqui não significa outra coisa senão o resultado da kênosis como expressão de liberdade)  encontra nas imagens do sal, da luz e do fermento seus melhores exemplos.

  • Sal da terra - contração de potência.

Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens[8].

            O sal é uma imagem riquíssima em possibilidades de sentido, tomemos dois deles para ilustrar a condição kenótica da Igreja. Em primeiro lugar o sal tem uma identidade diretamente ligada á discrição, a ser dosado em pequenas porções. Muito sal em qualquer comida acaba por estragá-la. A boa dose de sal é aquele que cumpre seu papel de dar sabor. O sal não tem finalidade em si, mas sua identidade está em perder-se, esvaziar-se de sua forma para conferir ao alimento aquilo que lhe falta. A existência cristã, tanto individual como eclesial deve ser como o sal em sua discrição. O esvaziamento – como atitude de liberdade – é elemento constitutivo de sua identidade.
Em segundo lugar, o sal tem uma vocação que justifica sua existência. Se ele não cumpre sua missão pode “ser jogado fora e pisado pelos homens”. Salgar, essa é a destinação do sal, não é tornar-se ele mesmo a realidade que é o alimento. A Igreja como convocada a uma missão precisa compreender que não foi chamada para tornar-se ela mesma uma realidade institucionalizada e detentora de poder (do tipo de uma teocracia), mas para conferir aquilo que falta ao mundo, o sabor que pode lhe conformar mais e mais ao Reino de Deus.

  • Luz do mundo - renúncia ao poder.

Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha. Ao contrário, coloca-a no lugar apropriado, e assim ilumina a todos os que estão na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus[9].

A luz é outra imagem com imensa capacidade de sentido. Ele tem uma identidade e uma missão que a assemelha com o sal, ao menos do ponto de vista da dimensão kenótica da Igreja. A identidade da luz , assim como a do sal, está em sua discrição, embora isso não pareça tão claro num primeiro momento, onde ela poderia sugerir uma imposição de sua presença. Não obstante essa primeira impressão, a luz é elemento que só tem sentido em face meio que a cerca. Ela por si só é um pequeno objeto, mas quando colocada no devido lugar ganha seu verdadeiro sentido. Só em face da sombra é que a luz pode ser compreendida, sua identidade, portanto, só pode ser percebida na relação. É uma identidade que se constrói na alteridade. A comunidade cristã, como luz do mundo, precisa apreender a integrar a sombra (a realidade que chamamos mundo), e perceber que só em relação criativa com ela é que sua verdadeira identidade poderá se afirmar.
Dessa identidade – fundada sobre o princípio da alteridade – surge sua vocação. Esta se constitui em perder-se na relação com a sombra. A luz não concentra toda a sua capacidade em si mesma, antes, ela se doa amorosamente iluminando o espaço a sua volta, até esbarrar com seu limite e possibilidade e não poder mais comunicar sentido – pois sempre haverá resistências na sombra que não acolherão a luz. A vocação da Igreja como luz consiste em doar-se gentilmente, atitude que contempla até mesmo a rejeição e o não acolhimento. Não caberá à Igreja, portanto, impor-se sobre qualquer realidade utilizando para isso expressões de poder, mas oferecer-se gentilmente inclusive podendo ser rejeitada.

  • Fermento na massa – humildade e discrição.

E contou-lhes ainda outra parábola: O Reino dos céus é como o fermento que uma mulher tomou e misturou com uma grande quantidade TTP:/de farinha, e toda a massa ficou fermentada[10].

Em fim, surge a imagem do fermento. Quem sabe essa seja a mais explicita das imagens que apontam para a identidade kenótica da existência cristã no mundo. Quem tem o mínimo de intimidade com a cozinha sabe que fermento é elemento que deve ser utilizado em pequenas doses. Um pouco de fermento leveda a massa... muito fermento estraga tudo. Pensar a identidade de comunidade cristã como fermento é compreender que ela deve ser presença frágil na sociedade. Um pouco de Igreja orientada pela mística cristã pode fazer muito mais para o reino do que uma enxurrada de instituições eclesiásticas que poluem as cidades, intoxicando-as com uma mensagem de poder, sucesso, prosperidade e indiferença com a vida real.
De uma identidade eclesial frágil como essa inspirada no fermento, emerge uma missão igualmente frágil. Em perspectiva kenótica a missão da Igreja não é ser a massa do pão, mas apenas o fermento que a leveda. A Igreja é chamada, como fermento, a ser elemento de anúncio do reino no mundo. A realidade maior é o reino e, este, quer visibilizar-se no mundo. A Igreja tem papel transitório de levar com que o mundo se conforme ao reino. Como fermento que é  esquecido após levedar a massa, a Igreja tem a vocação de ir se diluindo à medida que cumpre sua missão.

Por: Alessandro Rocha


[1] Filipenses 2. 5-11. Grifo nosso.
[2] Filipenses 2. 1-5. Grifo nosso.
[3] COMBLIM, José. Epístola aos Filipenses. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 39.
[4] Uma abordagem bastante abrangente sobre a realidade da comunidade mateana é  apresentada pelo teólogo Edward Shillebeeckx. Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Por uma Igreja mais humana. São Paulo: Paulinas, 1989.
[5] Mateus 11.25. Grifo nosso.
[6] Mateus 10.42. Grifo nosso.
[7] Mateus 25.34-46.
[8] Mateus 5.13.
[9] Mateus 5.14-16.
[10] Mateus 13.33.

1 comentários:

Cleinton disse...

O difícil é irmos nos diluindo enquanto cumprimos a missão. A tendência, infelizmente, é querermos sempre ser a massa, a parte preponderante. Parabéns pelo texto! Há braços...

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