Espiritualidade como recalque do recalque (um ensaio depois do qual não se sabe bem o que fazer)

domingo, 1 de abril de 2012


1. Passou-me pela cabeça a ideia de que a tradição filosófico-religiosa extremo-oriental tivesse alguma coisa de freudiano. Refiro-me especificamente ao recalque.

2.  Se há algo de comum no tecido cultural daquela imensa região do planeta é a tendência mais forte ou menos forte de considerar a realidade, o mundo, a matéria, uma não realidade, algo ilusório, maya.

3. Essa ilusão não tem o mesmo significado em todas as grandes religiões do Extremo Oriente, nem mesmo dentro das inúmeras facções de cada religião – todavia, tem uma característica comum: essa realidade em que vivemos não tem valor intrínseco, é aparente, é epifenomênica.

4. Do ponto de vista subjetivo, a doutrina traduz-se pela Verdade Fundamental – Atman é Brahman, mas “aprisionado” em sua manifestação individual, fragmentada, parcial: encarnada.

5. Assim, à ilusão que é a realidade, acrescenta-se a ilusão que é a individualidade. O mundo real está para Atman, assim como o mundo “verdadeiro” está para Brahman. Somente quando Atman libertar-se de sua condição de sujeito consciente, isto é, quando retornar à sua condição de Brahman, estará livre da ilusão.

6. Talvez essa tradição esteja por trás da filosofia-teologia de Platão, de sua compreensão do “mundo das ideias” como realidade “verdadeira”, em oposição ao mundo dos fenômenos.

7. E eu não duvidaria que, na Modernidade, após o contato do Ocidente com a Índia e a China, essas tradições extremo-orientais tenham invadido o campo filosófico europeu e, por extensão, americano, transformando, na direção de maya, a cosmovisão ocidental.

8. Não vou aqui embrenhar-me nessa mata fechada. Suspeitaria, todavia, que, seja na Física – a quântica –, seja nas filosofias de caráter pós-moderno, bem como, naturalmente, nas disciplinas adjacentes (História, Linguística), a “sublimação” da realidade se instalou por influência direta daquela plataforma cultural.

9. Não era assim, todavia, no campo semita, incluídas aí as tradições israelitas e judaicas, parte das quais encontra-se reunida na Bíblia Hebraica.

10. Nos termos do mito cosmogônico dessas tradições, a realidade intercomunicante dos mundos superior e inferior (se compreendidos dois andares) ou superior, médio e inferior (se compreendidos três andares) não deixa margem para uma ontologia metafísica de desvalorização do nível “humano” do edifício cósmico.

11. O mundo dos homens é apenas uma extensão “natural” do mundo dos deuses. Da mesma forma, o mundo dos mortos constitui uma extensão natural do mundo dos homens. Há comunicação entre eles – o que significa que não há ruptura de realidade, apenas de nível.

12. Os deuses descem a terra. Os mortos comunicam-se. Não há incompatibilidade entre os mundos. Sendo assim, não há que se elaborar uma espiritualidade que tenha sob mira a “verdadeira realidade”. As relações dos homens com os deuses dão-se no sentido de se produzirem condições ótimas de vida: vida, terra, família, pão, saúde.

13. Não há “almas” aí. E que sentido fariam? A vida depois da vida é concebida como uma continuidade. O corpo de barro é animado pelo sopro dos deuses – e torna-se uma coisa viva, animada. A vida é dom, que, todavia, não subsiste em si mesma, como algo dado e possível fora do homem. É a respiração. O homem é uma “garganta viva”.

14. É tão forte, todavia, a força que a espiritualidade faz para fugir do mundo que, a despeito dessa redigida tradição “bíblica”, elaborou-se, no Ocidente, outra “versão”, talvez atenuada, da matriz extremo-oriental.

15. O Ocidente concebe-se como “alma” – a “alma vivente”, da Almeida. Muitas vezes ridicularizando a “literalidade” de famosos folhetos de evangelização, concebe-se a “Nova Jerusalém” como um mundo de “almas” (fantasmas). Compreende-se que o homem é sua alma – o que faz dos Cristianismo de hoje alguma coisa entre Agostinho e Descartes...

16. Alguma surpresa, então, que a “espiritualidade” converta-se em dar de comer a esse fantasma? A dar de vestir a esse espectro? A lustrar esse ectoplasma?

17. É tão forte essa imagem e ideia que de nada adianta um Jesus ressuscitado a comer peixe, ou um Paulo perplexo e um pouco mais quanto ao fato de que – são helênicos! – os coríntios não consigam assimilar a doutrina da ressurreição. Tais episódios tornam-se “tópicos” narrativos e homiléticos, e dissolvem-se na bruma das não realidades...

18. E, finalmente, a alma assume o lugar do próprio homem. Os pretos, por exemplo: são, exceto na cor, em tudo igual aos brancos. Mas não são homens. Por quê? Porque lhes falta o que define o homem – a alma. Assim, pôr no arado um preto ou um boi é o mesmo...

19. Não se trata, aqui, de chamar o Ocidente a uma reação fundamentalista às suas origens. Não se trata aqui de pregar a favor da doutrina da ressurreição. Atman e Brahman, de um lado, e Lázaro e Talita, de outro, são mitos. Não se trata, aqui, de pensar o outro lado.

20. Trata-se de perceber como a vida foi reduzida de seu valor intrínseco. Ela não pode ter valor em si. Seu valor vem ou de Deus, ou da alma – isto é: do “outro lado”. E de um “outro lado” que não tem parte com o lado de cá, que é maya, é cárcere, é mau.

21. Nesse contexto, tenta-se – acredito na honestidade da tentativa – uma “espiritualidade” saudável. Todavia – como? Por que magia, prestidigitação, truque, o recalque freudiano da realidade pode assumir algum aspecto saudável?

22. Compreender-se-ia o fenômeno como gatilho: a capacidade que o cérebro e a psique tem de escapar de uma situação de dor, fugindo para outro mundo. Aqui, Freud e Marx aproximam-se consideravelmente, dado que as condições de dor podem ser individuais – um estupro – ou sociais – as fábricas inglesas do século XIX.

23. Todavia, a plataforma oriental e, agora, a Ocidental, não constituem gatilho circunstancial, mas converteram o recalque em modus vivendi.

24. E, nesse caso, a “espiritualidade” passa a ser a redoma pedagógica do estar nesse mundo, transcendendo-o, recusando-o, recalcando-o, mesmo quando se diz afirmá-lo como criação e graça.

25. Fugimos de alguma coisa. Há algo de muito terrível atrás de nós, para querermos, tanto, fugir do mundo. Talvez isso explique a noção de deicídio/parricídio que Freud ensaiou em Totem e Tabu. Um crime tão imperdoável que só nos reste fugir, correr, desembestarmo-nos em desabalada correria...

26. Atrás do vento...

27. É curioso como, na narrativa freudiana, há a morte do Pai na Origem. Também para nós, homens e mulheres dos séculos XX e XXI, marca-se nossa maioridade (Bonhoeffer) com a “morte de Deus”. Fugimos desde então. Nas filosofias, para dissolver a culpa. Nas teologias, para dissolvermo-nos a nós mesmos em sublimidades imateriais mergulhadas no perdão desesperado que nos negamos hic et nunc.

28. Para encerrar, gostaria de deixar registrado que, aqui e ali, no meio desse enredo de recalque, a seu tempo e modo, cada qual por suas razões circunstanciais e históricas, houve quem reagisse contra essa tradição de fuga e desmaterialização da vida.

29. Vimos o caso semita. Talvez se pudessem citar, na China, a tradição alquímica. Na Grécia, Aristóteles. Mais perto de nós, o Empirismo inglês. Ainda mais perto, Nietzsche. E, por derradeiro, Morin.

30. São reações, são resistências. Criam bolsões. Mas não criam mundos. Não ainda.

31. Estamos, todavia, na aurora da Humanidade, que ainda se arrasta, engatinha, balbucia as primeiras palavras.

32. Tenhamos paciência com essa criança.

33. Não a veremos pôr-se em pé.

34. Não é coisa para nossos dias.

Por: Osvaldo Luiz Ribeiro

2 comentários:

Cleinton disse...

excelente texto, grande osvaldo!
aproveito para dizer-lhe: bem vindo ao "ventos"!!
com mais tempo, poderemos articular "maya" e "mana". mas, para este momento, o doutorado não deixa, entende?
há braços...
cleinton.

gilbertogn disse...

Pensar a espiritualidade como recalque, é o mesmo que dizer "Viver fugindo do mundo real". Quando voltamos no tempo, lá na Galileia, onde Jesus exerceu a sua missão urbana, e onde viveu em meio as muitas culturas da época, sem no entanto perder sua espiritualidade. Ser espiritual é estar debaixo graça de Deus. É repartir o pão, isto é, é levar a palavra de Deus para os que ainda não evoluiram na fraternidade. Religiosidade mata!

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