Verdade, Poder e Resistência: sou um tolo, resisto!

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A informação tornou-se poder. Na prática, ela sempre foi: mas em tempos capitalistas, ela se assumiu formalmente como “mercadoria” – tem preço, custo, conta, rendimentos. E tem amigos e inimigos. A verdade tem “partido”.

Não se pode perder de vista que nos séculos XVIII e XIX foi travada a batalha do milênio: a batalha pela “verdade”. Cristandade (Igreja), Capital, Sociedade (Civil) – os três agentes lançaram-se sobre o tatame da disputa sobre quem detinha o sentido e a razão de ser da vida, da política, da civilização.

O Iluminismo não foi apenas um movimento científico. Foi – e é! –, acima de tudo, um movimento político. Seu dia seguinte, a Revolução Francesa, é o cansaço da negociação: é a virada de mesa, o pé na porta, o agora chega!

De um lado, os organismos relacionados ao “Antigo Regime” – Igreja e Monarquia, detentores da verdade divina (ambos!). De outro, a sociedade, em processo ambíguo e dinâmico de emancipação: dinâmico, porque a batalha se dá há muito mais tempo, ambíguo, porque essa sociedade se constitui de forças não uniformes, interesses não alinhados, antagônicos, até, como patrões e empregados, relação difícil, de harmonia sempre artificial e administrada.

Aí, mesmo quando as armas saíram dos armários, o tabuleiro e as peças retóricas da batalha foram a verdade. Apelou-se, então e muitas vezes, para Pilatos e Jesus: que é a verdade? Mas do que se está falando? Eis o contexto do “debate” entre Jesus e Pilatos, nos termos de João 18,33-38:

33 Pilatos, pois, tornou a entrar no pretório, chamou a Jesus e perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus? 34 Respondeu Jesus: Dizes isso de ti mesmo, ou foram outros que to disseram de mim? 35 Replicou Pilatos: Porventura sou eu judeu? O teu povo e os principais sacerdotes entregaram-te a mim; que fizeste? 36 Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; entretanto o meu reino não é daqui. 37 Perguntou-lhe, pois, Pilatos: Logo tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz. 38 Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade? E dito isto, de novo saiu a ter com os judeus, e disse-lhes: Não acho nele crime algum.
A pergunta de Pilatos sobre a verdade aplica-se à declaração de Jesus de que Pilatos o dizia rei e de que “para isso nasci”. Se esse é o testemunho da verdade, reflete Pilatos – isto é, este aí, rei dos judeus – resta ao magistrado apenas relativizar a verdade: “que é a verdade?”. Não se trata de uma discussão filosófica. Trata-se de uma discussão política. Trata-se de poder. Poder. E, no alto da cruz, escrever-se-á a “verdade”: Jesus de Nazaré, Reis dos Judeus. Política.

Também no século XIX. Nietzsche vai retornar a Pilatos e, pela mesma razão, negar “racionalidade” na reinvindicação dos revolucionários de França que, em seus dias, punham inveja também em certas categorias alemãs – para horror do aristocrata e filósofo higiênico.

A Revolução apelou para a “verdade”, para a racionalidade, para o “real”, para o material – “o racional é real e o real é racional”... À “direita”, só houve um movimento possível: negar essa mesma verdade. Que é a verdade?

É aqui que, acho, se encontra a razão de parte da relativização da “verdade” – esse boneco de pano maltratado. Diante da reivindicação da verdade pela esquerda, a direita a desmerece e dela desdenha. Diante do monopólio da tecnologia pela direita, a esquerda, reativa, mas, a meu ver, equivocada, reage lutando – Deus do céu! – também ela (e, nesse caso, certamente a serviço da direita), contra a verdade. A “verdade”, pensa a esquerda envergonhada e confusa, é uma ciência opressora: façamos poesia e metáforas! Quando, sobre nós, caírem as bombas, cantemos e dancemos a dança dos sátiros – que é a verdade, oi!, que é a verdade?, ai!...

Linguagem, aqui, intersubjetividade, ali, metáfora, acolá, a verdade reduz-se a nada e coisa alguma, a acordos psicológicos, a “Tratados” de meio-olho... Eis o século XX. Enquanto os filósofos – de direita e de esquerda (Deus do céu!, e não se vê a serviço de que [de quem!] se está?)! – concentram-se em repetir a pergunta de Pilatos tantas vezes que não haja chance para a refutação da refutação, os poderes deste século avançam irresistivelmente sobre o mundo, utilizando-se até ao mais profundo da “verdade” – a tecnologia, a ciência, o controle das massas, a informação, os jornais, as revistas – quando não usam a verdade a seu favor, usam a mentira contra nós. E nós: poesia, cavalheiros, poesia!

Quando caiu o Muro, a esquerda recebeu a prova de que “não havia verdade”. E, todavia, as forças que derrubaram aquele murro trabalharam febrilmente, enquanto os filósofos lidavam com palavras... Onde há de se bater, mestre engenheiro, para o muro cair? Aqui. Pá! Pá!, e o murou caiu... Não se cantaram canções de Josué ao redor dele – apertaram-se botões...

Que equívoco – considerar que por não haver verdade divina, não há verdade alguma. Não há sequer história, eles dizem – e há quem creia nisso! Não há anestesia maior – salvo a religião, naturalmente – do que essa: desacreditarem-se todos da verdade, da materialidade das coisas, da sua racionalidade relacional em face dos discursos e de sua adequação às coisas. Isolados em si mesmos, atravessando dutos imaginários até, apenas, as mentes das pessoas, mas, sem tocar, jamais, o chão, a terra, a matéria, o que há é teatro, espetáculo, paródia, farsa, fadiga. E, naturalmente, sobre tudo isso, Poder.

Quanto a mim, resisti firmemente à hipnose das verdades divinas. Venci essa batalha. Então, me lançaram nessa outra. Tentaram me convencer de que não há verdade alguma. Escrevam livros para mim! Rasguei-os todos, lancei-os à vala comum das tolices bem pensadas!

Há verdades, sim. Locais, situadas, circunstanciais. Há, até, verdades universais, circunstancialmente absolutas – por exemplo, nossa forma de vida depende de oxigênio, e essa é uma verdade circunstancial (nossa forma de vida), mas absoluta (precisa de oxigênio). Há verdades, sim: a vida quer manter-se, a despeito de quem seja, pobre ou rico, forte ou fraco. Não são construtos psicológicos – apenas: são pulsões orgânicas, materiais, reais. As verdades em que creio estão ligadas à vida – e, também, aos desdobramentos da vida em relação ao mundo e à psique.

Resistirei bravamente às defesas apaixonadas da intersubjetividade, da metáfora, da desmaterialização, venham os apelos da direita ou da esquerda, dos inimigos ou dos amigos. É preciso resistir. Vencemos os deuses. Venceremos os homens. Quanto mais sabemos que sempre se trataram deles – os homens e sua bocarra escancarada e cheia de dentes.

Por: Osvaldo Luiz Ribeiro

1 comentários:

Cleinton disse...

Creio que existem, sim, alguns universais. Quando citei isso numa aula na graduação em Teologia, um colega de sala, historiador, refutou, dizendo que nem o incesto é um universal, pois já se encontram sociedades onde ele não é um interdito. Todavia, na busca pela verdade, é possível encontrarmos alguns universais, tal como os que o seu texto cita, grande Osvaldo. Toda sociedade precisa viver sob a égide de algum tipo de interdição. Não há, pois, sociedades completamente livres de interditos sociais. Doutro modo, o respeito a algum tipo de relação de parentesco também se nos apresenta como um universal. Deste modo, dialogando com a Antropologia, acho que é possível encontrarmos subsídios para se afirmar que a busca pela verdade é um jogo válido. Há braços...

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